Entrada del blog por Helio Medeiros
A adequada compreensão do direito fundamental ao processo justo passa pelo da relação entre direito e cultura, ou seja, o que era processo e qual a sua função em dado momento histórico.
É cada vez mais lógica a afirmação no estudo do Direito de que este se encontra intimamente imbricado com a experiência e a cultura do povo[1].O Direito Processual Civil é produto da cultura do homem conceituada esta por Galeno Lacerda[2]como o “conjunto de vivências de ordem espiritual e material, que singularizam determinada época de uma sociedade”. Não foi à toa que Pontes de Miranda em importante ensaio se referiu ao direito processual como sendo o “ramo das leis mais rente à vida” [3], o que significa que o direito processual civil é influenciado pelo momento histórico no qual se insere[4].
Dado o caráter histórico em que o Direito Processual Civil se reveste, torna-se imprescindível fazer uma análise de sua evolução a partir do estudo de suas fases metodológicas.[5] Segundo Daniel Mitidiero[6], recolhem-se da história alguns endereços culturais que nos remetem, basicamente, a quatro modelos processuais: o praxismo, o processualismo, instrumentalismo e o formalismo-valorativo. A cada fase metodológica corresponderia a um momento histórico cultural. Para Marco Félix Jobim, no entanto, existiriam mais duas fases metodológicas, as quais foram nominadas de neoinstrumentalismo e neoinstitucionalismo[7].
Na fase praxista, também denominada de sincretista ou imanentista o processo era parte integrante do direito material, notadamente caracterizado por uma interdependência em relação ao direito material, marcadamente destituído de caráter científico, sem uma construção segura dos institutos processuais.[8]O ponto sensível desta fase decorreu de sua fragilidade conceitual, não permitindo que o processo fosse desenvolvido como ciência autônoma do direito material, o que veio a ser o grande fundamento para instauração de uma nova fase[9].
É possível dizer que o processo na fase praxista não possuía uma natureza técnica, era apenas um procedimento a serviço do direito material. No entanto, este período teve seu fim em 1868, ano da publicação da obra Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos Processuais do jurista alemão Oskar Von Bulow. O fim desta fase é explicada por Alexandre Freitas Câmara:
Em 1868, ano da publicação do jurista alemão Oscar Von Bulow, denominada de “A teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos processuais”, com a qual se inicia a teoria do Processo como relação jurídica, o direito processual passa a ser considerado um ramo autônomo do direito, passando a integrar, como já afirma, o direito público. Inicia-se, com a publicação do referido livro do jurista alemão, a fase científica do Direito processual, assim denominada por ter sido uma fase em que predominaram os estudos voltados para a fixação dos conceitos essenciais que compõe a ciência processual, tais como de ação, processo e coisa julgada.[10]
Conforme a lição doutrinária, com a publicação da obra foi devidamente inaugurada uma nova etapa no desenvolvimento do Direito Processual Civil, denominada pela doutrina de processualismo. Esta fase metodológica foi marcada por um profundo desenvolvimento científico do direito processual civil, ao ponto de desvincular-se completamente do direito material.[11]
A partir deste momento houve o reconhecimento do processo como ramo autônomo da ciência do direito, caracterizado por grande desenvolvimento de suas bases fundamentais, permitindo a sua maior independência em relação ao direito material[12].No entanto, a autonomia da ciência processual também acarretou consequências nefastas em razão de seu tecnicismo exacerbado. O processo passou a ser concebido como pura técnica, impermeável pelos valores da sociedade na qual se inseria[13]. Tamanha autonomia representou o próprio fim desta fase, porquanto o direito processual restou inteiramente mergulhado em um formalismo sem precedentes, totalmente despreocupado com os anseios sociais.
Embora o processualismo tenha representado apenas um desenvolvimento científico da ciência processual, não é possível ignorar grande contribuição desta fase metodológica. José Carlos Barbosa Moreira ressaltou a importância do processualismo no desenvolvimento científico do direito processual civil, embora também tenha reconhecido as suas deficiências:
(..) não há que censurar a geração dos estudiosos que durante anos lavraram, com os instrumentos de uma técnica incessantemente aperfeiçoada, o terreno do processo. Era necessário, e foi útil, que o fizessem.Ninguém deve subestimar o proveito que se tirou, e ainda hoje se tira, do produto desse labor. Não é coisa desprezível podermos trabalhar sobre estruturas sólidas, empregar a linguagem precisa, lidar com conceitos definidos, saber como s articulam as peças do mecanismo. Muitas e boas razões temos para ser gratos aos nossos antecessores pelo legado que deles recebemos.[14]”
Desenvolvidas as bases científicas do direito processual, não demorou muito tempo para que os estudiosos da primeira metade do século XX percebessem as consequências indesejáveis de sua percepção puramente técnica e formal. Dentro deste contexto, originou-se o terceiro momento metodológico do direito processual, denominada de fase Instrumentalista.
O Instrumentalismo foi sistematizado no Brasil pela Escola Paulista de Direito Processual Civil[15]. O Instrumentalismo é caracterizado pela consciência da instrumentalidade como importantíssimo pólo de irradiação de ideias e coordenador de diversos institutos processuais. Para melhor caracterizar esta fase essencial do direito processual, é essencial transcrever as considerações de seu maior expoente:
A perspectiva instrumentalista do processo assume o processo civil como um sistema que tem escopos sociais, políticos e jurídicos a alcançar, rompendo com a idéia de que o processo deve ser encarado apenas pelo seu ângulo interno. Em termos sociais, o processo serve para persecução da paz social e para a educação do povo; no campo político, o processo afirma-se como um espaço para a afirmação da autoridade do Estado, da liberdade dos cidadãos e para a participação dos atores sociais; no âmbito jurídico, finalmente, ao processo confia-se a missão de concretizar a ‘vontade concreta do direito. [16]
Trata-se de um momento em que há uma nova reaproximação, agora mais real e qualitativa, do direito processual em relação ao direito material e, por conseguinte de profunda melhora na prestação da tutela jurisdicional, tornando-se mais efetiva, e na medida do possível, mais célere e justa. O processo, nesta fase, deixou de ser visto como mero mecanismo com um fim em si mesmo, e passou a ser encarado com um meio em que o Estado dispunha para alcançar seus escopos sociais, jurídicos e políticos.
Todavia, a fase instrumentalista também transformou o processo em mera técnica. A crítica mais contundente endereçada ao Instrumentalismo parte de Guilherme Rizzo Amaral ao esclarecer que o processo na fase instrumentalista continua preso à técnica quando juiz se torna escravo dos escopos do próprio instrumentalismo[17].
Assim, é possível afirmar que a instrumentalidade teve o mérito no sentido de demonstrar que o processo não era um fim em si mesmo, no entanto esta fase não exauriu o potencial reformista do direito processual[18], uma vez que a promulgação da Constituição de 1988 desencadeou um estreitamento dos laços entre o direito processual civil e a Constituição até então quase inexistentes.
Este novo momento histórico do Brasil foi denominado de Neoconstitucionalismo que inaugurou uma nova compreensão do sistema jurídico vigente. A sua premissa teórica possui dentre outros aspectos o desenvolvimento de uma nova dogmática na interpretação constitucional[19].
A Constituição passou a ser o núcleo hermenêutico de todo sistema jurídico, tornando-se o fundamento de validade das normas jurídicas infraconstitucionais, inclusive das regras processuais, introduzindo em seu texto direitos e garantias de natureza processual[20].
Foi inaugurado um novo modelo teórico de aplicação do direito, determinando notadamente a ruptura do Estado Legislativo para um Estado Constitucional, o que implicou também em uma nova compreensão do direito processual civil.
Luís Roberto Barroso esclarece o significado do Neoconstitucionalismo:
O novo direito constitucional, fruto das transformações narradas neste capítulo, tem sido referido, por diversos autores, pela designação de neoconstitucionalismo. O termo identifica, em linhas gerais, o constitucionalismo democrático pós-guerra, desenvolvido em uma cultura filosófica pós-positivista, marcada pela força normativa da Constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova hermenêutica.[21]
Atualmente, é possível que o Direito Processual Civil está inteiramente vinculado a esta premissa teórica, ou seja, à vigência de um Estado Constitucional. E esta relação estreita entre Constituição e processo foi fundamental para construção de uma quarta fase metodológica em que atualmente o direito processual estagia.
Discute-se na doutrina qual seria a vertente teórica que representaria esta nova fase metodológica. Marco Félix Jobim disserta sobre três escolas de pensamento que se candidatam a dar novos rumos ao direito processual civil na atualidade. Primeiramente, ressalta a existência do Neoproessualismo e do Neoinstitucionalismo, ambas alicerçadas também no neoconstitucionalismo.
Por fim, esclarece o autor a existência do formalismo-valorativo, fase metodológica desenvolvida na Escola Gaúcha de Processo Civil, originada em tese de doutorado de seu criador, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, defendida na Universidade de São Paulo e premiada com a medalha Pontes de Miranda[22].
O formalismo-valorativo coloca o processo no centro da teoria geral do direito, estabelecendo uma perfeita relação entre direito e processo, processo e constituição. O seu maior expoente compreendia o direito processual como direito constitucional aplicado.
Realmente, se o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica mas, sim, como instrumento de realização de valores e especialmente de valores constitucionais , impõe -se considerá-lo como direito constitucional aplicado[23] .
Atualmente, o formalismo-valorativo representa a quarta fase metodológica vivenciada pelo direito processual, que nas palavras de seu criador, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, representa:
Muito mais consentâneo ao nosso ambiente cultural revela-se colocar o processo no centro da teoria do processo. Valoriza-se aí, em maior escala, o papel que todos nele tomam parte , o modelo cooperativo de processo civil e o valor da participação inerente à nossa democracia constitucional.
Tudo conflui, pois, à compreensão do processo civil a partir de uma nova fase metodológica – o formalismo valorativo. Além de equacionar de maneira adequada as relações entre direito e processo, entre processo e Constituição, coloca o processo no centro da teoria do processo.
O formalismo valorativo mostra que o formalismo do processo é formado a partir de valores-justiça, igualdade, participação, efetividade, segurança-, base axiológica a partir da qual ressaem princípios, regras e postulados para sua elaboração dogmática, organização, interpretação e aplicação.
Nessa perspectiva, o processo é visto, para além da técnica, como fenômeno cultural, produto do homem e não da natureza. Nele os valores constitucionais, principalmente o da efetividade e o da segurança, dão lugar a direito fundamentais com características de normas principais[24].
É importante ressaltar que o formalismo-valorativo não advoga simplesmente no sentido de realizar uma conformação constitucional do processo, “mas de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional, com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele conduzido[25]”.
É nesse contexto que surge o direito ao processo justo, direito de natureza processual que impõe deveres organizacionais ao legislativo, ao judiciário e ao executivo para a criação de processos idôneos para tutela de direitos. Somente um processo justo será possível a prestação de uma tutela jurisdicional que seja adequada, justa e efetiva. Assim, é inegável o seu caráter de direito fundamental em sentido material, uma vez que visa dar concretude a outros direitos fundamentais, tutelando-os das mais diferentes formas.
[1]LACERDA,apud, MITIDIERO, Daniel. Processo e Cultura- Praxismo, processualismo e formalismo em direito processual civil. Disponível: www.abdpc.org. br. Academia Brasileira de Processo Civil. Acesso em: 10 de Nov de. 2014
[2] Processo e Cultura. In: Revista de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva 1961, p.75, V. III.
[3] MIRANDA DE, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil, 5. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. XIII, prólogo, tomo I.
[4] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no Processo Civil. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.74.
[5]CARPES, Artur. Ônus dinâmico da Prova. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 20.
[6]MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: 2009, Revista dos Tribunais, p. 29-30.
[7] JOBIM, Marco Félix. Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 111-139.
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. O Futuro do Processo Civil. Rio de Janeiro: Revista Forense, n.336.
[9] CAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual Civil: teoria geral do processo, processo de conhecimento e recursos. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. V.1, p.7.
[10]CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.11
[11] DINAMARCO, Cândido Rangel. Reflexões entre Direito e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.432, out.1971,p.23.
[12] THEODORO JÚNIOR. Humberto. A reforma do Código de Processo Civil. Revista do Curso de Direito da FUMEC .Porto Alegre, V. 2, 2000, p.13.
[13] AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e Execução de sentença sob a ótica do formalismo-valorativo.
[14]MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os novos rumos do Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo: São Paulo, n.78, abr-jun.1995,p.19.
[15] PAULA, Jônatas Luiz Moreira da. História do direito processual civil brasileiro: das origens lusas à escola crítica de processo. Barueri: Manole, 2002. p.356.
[16]DINAMARCO. Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 15 ed. São Paulo: Malheiros.
[17] AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento de sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 34.
[18] .Haroldo Lourenço. Neoprocessualismo, Formalismo Valorativo e suas Influências no Novo CPC. Disponível: www.abdpc.org.br. Academia Brasileira de Processo Civil. Acesso em: 10 de Out.2014
[19]BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 6 nov. 2014.
[20] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Disponível em: www. abdpc.org. br. Academia Brasileira de Processo Civil. Acesso em: 10 de Out.2014.
[21] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: 2013, Saraiva, p.288.
[22] JOBIM, Marco Félix. Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p.127.
[23]OLIVEIRA , Luiz Carlos Alberto Alvaro de. O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais. Disponível em: www.acbpc.com.br, acessado em 16/11/2014, às 17h.
[24]OLIVEIRA , Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no Processo Civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 21-23.
[25]OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no Processo Civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 21-23.
[26]THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Processo Civil. V.1. 53 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 19.